19.12.06

FELIZ NATAL



Largo das Necessidades



Lisboa olhada a partir de emoções das personagens que dão vida a esta narrativa riquíssima em pormenores.

Temos a cidade que dança no corpo de uma bailarina que perdeu o ritmo e por isso costura a vida em empreitadas de figurinos para teatro, a Lisboa que chora e partilha a sua dor com turistas numa toada de “tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado” pela voz de um fadista rouco, a alma cigana num personagem que toca saxofone noite dentro enquanto bebe ritualmente o seu café, preto, aromático. Um palhaço que desfia vivências enquanto passa a ferro a camisa remendada de um arlequim com consciência.




“Sou de um lugar que não existe, e procuro renascer aqui, onde não nasci senão de coração”.


Um espaço por todos partilhado: “O Beirabismo” enquanto lugar físico, pensão barata, mas fundamentalmente um Hades de sensações, um turbilhão de emoções onde se cruza a cidade do ontem e de hoje.
Lisboa que vive na alma dos lisboetas, de todos os que se apaixonam por esta luz única que se sente mesmo nas noites frias, cristalinas, um comprazimento na dor, a alegria do sonho sempre adiado de um Quinto Império prometido;

Enfim a prosa poética numa carta de amor à cidade, temos aqui uma promessa na escrita.


Paola d’Agostino oferece-nos uma leitura num só folgo de paixão, encadeia passados e saudades do futuro e lembra histórias e estórias de quotidianos que de quase rotineiros se tornam mágicos.

“Experimento aqui os sabores dos destinos possíveis, de opções certas ou erradas engastadas n paisagem de milhares e milhares de caixas chinesas, de cidades na cidade e praças, e de jardins que se escondem e confundem no meio de outras inúmeras e diferentes praças, jardins e amendoeiras.”

Um presente de Natal diferente, longe do consumismo e da sua catedral maximizada na árvore de desvirtua o Terreiro do Paço;

Convida-nos e sonhar, senão lembrar noites do HotClube ou nos fados em Alfama, as luzes cintilantes de numa escrita cuidada, só possível pela mão de alguém que percepciona este misto de sentimentos contraditórios entrecruzados na alma desta cidade inigualável.

Um brinde num tinto quente, com tons de flores e frutos vermelhos!

“- Mas tu, quando fosses grande, que gostavas de ter feito?
- Ser palhaço.
- E então, porque é que és escritora?
- Porque ainda não sou grande”.

Acrescentamos nós que na promessa desta pierrô temos uma contadora de histórias talentosa.

Apresentámos pobremente esta proposta de presente para a quadra e aguardamos aqui comentários ao livro, editado pela Fenda, que enriqueçam esta incompetente crónica literária.

2.12.06

EXAME


Estreou no passado Sábado uma outra peça no Teatro da Garagem – O Exame.
Trata-se de um espectáculo curto simpático mas nem por isso pouco interessante: muito bem pelo contrário.

Uma peça em torno de uma prova oral (ou melhor de três!) que se desenrola em múltiplos “teatros de operações”, da escola ao panorama futuro, das incertezas do professor às questões existenciais do aluno apresenta-se um texto intrigante, curioso e ao mesmo tempo desafiador de consciências.

O amor, a política, a história, as conjunturas, a poética e nossa estrutura cognitiva, a mandala, questões cósmicas e outras tantas bem terrenas sobre que por aqui dois personagens conversam demonstram uma maturidade na representação, uma economia na cena, um trabalho de construção de personagem e resultam num espectáculo muito bem a este nível.
Um baloiço entre a vida real e o imaginário poético num bounce muito bem ritmado pelo actor Fernando Nobre que, enquanto aluno se sustém quase uma hora num equilíbrio de forças monumental e assinalável.
Numa rede sem trapézio em que palavras, emoções e racionalidade se entrecruzam magistralmente. O actor dá vida a um texto difícil mas que tão bem expressa entre a força e a emoção a racionalidade e a cadência, entre o adulto ponderado e a criança espontânea passando por uma juventude perene.



Por seu lado, o irrepreensível Miguel Mendes oferece um chá, muito acolhedor, ao público que chega da rua, do trânsito, do ritmo frenético desta cidade para enfim descansar nesta peça que faz ecoar passados bem presentes e sonhar futuros particulares que a todos tocam muito particularmente.
Entre um chá servido e o diálogo com o aluno este professor questiona-nos sobre pormenores que tudo mudam, convida-nos a reflexões, faz-nos sorrir:
primeiro timidamente, depois numa gargalhada absurda ao sermos confrontados com um rato que se retira da chaleira enquanto se discorre sobre o Czar da Rússia.

Um outro elemento a assinalar reside na música a piano que acompanha toda a peça e muito especialmente no cuidado que denotou a elaboração da sonoplastia, da responsabilidade de Daniel Cervantes.
Juntando-se-lhe os efeitos visuais fruto de um bom desenho de luz temos a mise en scéne propicia a um espectáculo memorável que sem nos contar uma estória nos remete para tantas histórias.

Neste tempo frio assistimos aqui a um espectáculo caloroso, entre a materialidade das compras que aceleradamente se aproximam partilhamos naquele espaço cénico a espiritualidade humana que estes actores perpassam.

Só uma palavra: Memorável.

Se já existiam boas razões para visitar o Taborda por esta altura, agora estas tornam-se ponderosas.


A NÃO PERDER.

No Teatro Taborda à Costa do Castelo.
De Quarta a Domingo às 21h30.
Até 10 de Dezembro.
Bilhetes 5 € com descontos vários.